Por Repórter de Campo Ida Bel
Alguns coletivos de mídia livre que
vêm ganhando visibilidade devido à cobertura de manifestações sinalizaram a
abertura de uma nova frente de trabalho ao acompanhar a ocupação militar realizada
no domingo, dia 6 de outubro de 2013, para a implantação de uma UPP no Complexo
do Lins, zona norte do Rio de Janeiro. Juntamente com advogados, ativistas de
direitos humanos e membros da defensoria pública, a imprensa alternativa buscou
registrar a atuação da polícia e colher depoimentos de moradores,
preocupando-se em relatar as dinâmicas da ocupação e funcionar como um veículo
para dar visibilidade às impressões, opiniões e eventuais denúncias da
população. Esta foi ainda uma iniciativa experimental, aquém das nossas expectativas,
porém teve o seu caráter inaugural e trouxe à tona alguns dos obstáculos a
serem contornados para que o jornalismo independente conquiste o seu lugar nas
favelas e possa incorporar-se ao cotidiano dos moradores.
Antes de aventurarem-se na
cobertura da ocupação, os coletivos de mídia livre cumpriram alguns protocolos
para nós evidentes, porém normalmente desconsiderados pela grande imprensa, como
articular-se com as associações de moradores e consultá-las sobre a melhor
forma de se colocar a serviço da população e minimizar riscos. A circulação de
imagens em favelas é uma questão delicada, sobretudo quando envolve os temas do
crime, violência e segurança pública. Levanta suspeita devido ao seu potencial
de expor as pessoas, ligando fisionomias a feitos, falas e lugares, em um
ambiente marcado por disputas entre policiais e traficantes. Embora não se
possa negar o mérito da proposta de estimular a fiscalização popular da ação
policial, cabe lembrar que os moradores de favelas podem julgar mais prudente
esquivar-se desse tipo de confronto, o que precisa ser respeitado. A exibição
de imagens ao vivo ou uma edição pouco cuidadosa poderia ocasionar efeitos
indesejáveis ou mesmo desastrosos. No entanto, um morador, seguro de sua maior
familiaridade com a etiqueta local, encarregou-se da transmissão via TwitCasting
da entrada da UPP, ao passo que nós “visitantes” ativistas, dividimo-nos em
blocos com cerca de dez pessoas cada e passeamos pela favela, filmando,
fotografando e conversando com moradores ou, inclusive, policiais.
Já nos haviam prevenido sobre o
“teatro” que costuma ser montado no primeiro dia da ocupação para propagandear
a UPP com a ajuda dos principais veículos de comunicação. Segundo moradores de
favelas, as arbitrariedades, invasões a domicílios e violência cometidas pela
polícia em outras áreas de UPP teriam cessado no momento inicial da ocupação. A
motivação principal da formação de um mutirão de acompanhamento da ocupação
militar no Lins foi oferecer maior tranquilidade e segurança aos moradores que
estavam apreensivos devido às recentes operações policiais com vítimas letais
na região, no entanto, os próprios moradores sabiam que o período mais crítico,
em que a presença de advogados e da imprensa livre seria mais necessária,
estaria ainda por vir, não sendo propriamente o dia da ocupação.
Minutos após nossa chegada,
tornou-se fácil compreender o que os moradores queriam dizer com “teatro”. Uma
trupe da cavalaria da PM transitava pela rua com ares de parada militar,
comunicando a presença ostensiva de um braço armado do Estado. Na praça da
localidade conhecida como Cachoeirinha, uma criança moradora de favela andava a
cavalo, conduzida por policiais, e esta era a imagem de fundo da entrevista
cedida por um oficial da PM a uma repórter da grande mídia. Com boa aparência e
voz de locutor de rádio, o policial acionava belos argumentos, referindo-se ao
“binômio polícia e comunidade” como sendo a “receita do sucesso da
pacificação”. Quando interpelado por um jornalista da Mídia Ninja a respeito da
operação policial da segunda-feira anterior, ele recusou-se a dar declarações.
Mais adiante, a presença de um caveirão e de uma assustadora bandeira do BOPE
hasteada tinha como fundo musical uma canção em loop anunciando a pacificação.
Apenas cinco minutos de exposição à música que se repetia seriam suficientes
para tirar qualquer um do sério, mas os moradores das casas vizinhas assistiam
calados ao espetáculo.
Não permanecemos no local, pois
além da música nos incomodar, a proposta de cobertura independente visava
acessar o ponto de vista dos moradores e não apenas o “circo” armado pela UPP
para ser transmitido pelas principais redes de televisão que lá se encontravam.
“Circo” e não mais “teatro”. Foi este o termo que espontaneamente se disseminou
entre todos os membros do mutirão para se referir à encenação testemunhada.
Mas apesar da nossa intenção de
diferenciarmo-nos com relação ao par UPP/imprensa, constatamos que a presença
de advogados e midiativistas na favela acabava indesejavelmente corroborando o
“circo” da UPP. Poucos foram os moradores que de fato compreenderam a motivação
do mutirão. Alguns perguntaram em tom de deboche se éramos turistas. Outros
exclamavam “vou aparecer na Globo!”, ao serem por nós filmados ou fotografados.
Quando interpelados sobre as suas expectativas a respeito da UPP, alguns
moradores acionavam um tom levemente cínico e diziam-se muito contentes com a
ocupação. Diante da insistência de um repórter em saber detalhes sobre a sua
opinião, um morador explicou: “vocês vão embora e eu vou continuar aqui”. Pareciam
interpretar que possuíamos algum vínculo com a UPP ou que a nossa presença na
favela era apenas mais um resultado da pacificação, tal qual a dos vendedores
de planos da Sky e Claro TV que ocuparam também o Lins na mesma manhã.
A experiência de domingo suscitou
uma série de questões e, sobretudo, uma postura autocrítica. Como podemos nos
articular para ocupar um lugar fora do “circo”? Como fazer para que a mídia
livre seja reconhecida enquanto tal e possa servir de instrumento para os
moradores que estiverem dispostos a pautar as notícias sobre a favela? Embora
exista uma série de iniciativas de mídia alternativa em favelas, como as rádios
comunitárias e ONGs que estimulam a produção local de conteúdo, ainda é pouco
disseminado o conhecimento sobre essas ações. O desconhecimento é ainda maior
no que se refere aos coletivos midiativistas de fora da favela, que estão agora
dispostos a participar do cotidiano desses espaços. O imaginário local não
reconhece ainda a figura do jornalista independente: essas pessoas que filmam,
fotografam e fazem perguntas, mas não são informantes policiais – os chamados
x-9 – ou tampouco trabalham para a Globo, SBT ou Record.
Está colocado o desafio. Assim como
a imprensa livre conquistou o seu lugar na paisagem das manifestações e já não
causa mais estranhamento algum, resta agora expandir essa naturalização da sua
presença para outros espaços. As favelas são um caso a parte, que exigirá muita
cautela e bom senso para não expor a segurança de pessoas que vivem em meio ao
fogo-cruzado entre traficantes e policiais. Não podemos, contudo, corroborar as
fronteiras tácitas que fracionam o espaço público urbano entre o morro e o
asfalto. A favela também quer falar e o
midiativismo promovido por pessoas de dentro e fora das favelas quer somar
forças para entoar sua voz pelos novos veículos que vêm se abrindo.
Abaixo um vídeo feito pela midiativista Paula Kossatz:
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