jornalismo independente vinhetando

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sábado, 12 de outubro de 2013

POR UM LUGAR FORA DO “CIRCO”: COBERTURA DA UPP NO LINS E O MIDIATIVISMO EM FAVELAS

Por Repórter de Campo  Ida Bel

Alguns coletivos de mídia livre que vêm ganhando visibilidade devido à cobertura de manifestações sinalizaram a abertura de uma nova frente de trabalho ao acompanhar a ocupação militar realizada no domingo, dia 6 de outubro de 2013, para a implantação de uma UPP no Complexo do Lins, zona norte do Rio de Janeiro. Juntamente com advogados, ativistas de direitos humanos e membros da defensoria pública, a imprensa alternativa buscou registrar a atuação da polícia e colher depoimentos de moradores, preocupando-se em relatar as dinâmicas da ocupação e funcionar como um veículo para dar visibilidade às impressões, opiniões e eventuais denúncias da população. Esta foi ainda uma iniciativa experimental, aquém das nossas expectativas, porém teve o seu caráter inaugural e trouxe à tona alguns dos obstáculos a serem contornados para que o jornalismo independente conquiste o seu lugar nas favelas e possa incorporar-se ao cotidiano dos moradores.
Antes de aventurarem-se na cobertura da ocupação, os coletivos de mídia livre cumpriram alguns protocolos para nós evidentes, porém normalmente desconsiderados pela grande imprensa, como articular-se com as associações de moradores e consultá-las sobre a melhor forma de se colocar a serviço da população e minimizar riscos. A circulação de imagens em favelas é uma questão delicada, sobretudo quando envolve os temas do crime, violência e segurança pública. Levanta suspeita devido ao seu potencial de expor as pessoas, ligando fisionomias a feitos, falas e lugares, em um ambiente marcado por disputas entre policiais e traficantes. Embora não se possa negar o mérito da proposta de estimular a fiscalização popular da ação policial, cabe lembrar que os moradores de favelas podem julgar mais prudente esquivar-se desse tipo de confronto, o que precisa ser respeitado. A exibição de imagens ao vivo ou uma edição pouco cuidadosa poderia ocasionar efeitos indesejáveis ou mesmo desastrosos. No entanto, um morador, seguro de sua maior familiaridade com a etiqueta local, encarregou-se da transmissão via TwitCasting da entrada da UPP, ao passo que nós “visitantes” ativistas, dividimo-nos em blocos com cerca de dez pessoas cada e passeamos pela favela, filmando, fotografando e conversando com moradores ou, inclusive, policiais.
Já nos haviam prevenido sobre o “teatro” que costuma ser montado no primeiro dia da ocupação para propagandear a UPP com a ajuda dos principais veículos de comunicação. Segundo moradores de favelas, as arbitrariedades, invasões a domicílios e violência cometidas pela polícia em outras áreas de UPP teriam cessado no momento inicial da ocupação. A motivação principal da formação de um mutirão de acompanhamento da ocupação militar no Lins foi oferecer maior tranquilidade e segurança aos moradores que estavam apreensivos devido às recentes operações policiais com vítimas letais na região, no entanto, os próprios moradores sabiam que o período mais crítico, em que a presença de advogados e da imprensa livre seria mais necessária, estaria ainda por vir, não sendo propriamente o dia da ocupação.
Minutos após nossa chegada, tornou-se fácil compreender o que os moradores queriam dizer com “teatro”. Uma trupe da cavalaria da PM transitava pela rua com ares de parada militar, comunicando a presença ostensiva de um braço armado do Estado. Na praça da localidade conhecida como Cachoeirinha, uma criança moradora de favela andava a cavalo, conduzida por policiais, e esta era a imagem de fundo da entrevista cedida por um oficial da PM a uma repórter da grande mídia. Com boa aparência e voz de locutor de rádio, o policial acionava belos argumentos, referindo-se ao “binômio polícia e comunidade” como sendo a “receita do sucesso da pacificação”. Quando interpelado por um jornalista da Mídia Ninja a respeito da operação policial da segunda-feira anterior, ele recusou-se a dar declarações. Mais adiante, a presença de um caveirão e de uma assustadora bandeira do BOPE hasteada tinha como fundo musical uma canção em loop anunciando a pacificação. Apenas cinco minutos de exposição à música que se repetia seriam suficientes para tirar qualquer um do sério, mas os moradores das casas vizinhas assistiam calados ao espetáculo.
Não permanecemos no local, pois além da música nos incomodar, a proposta de cobertura independente visava acessar o ponto de vista dos moradores e não apenas o “circo” armado pela UPP para ser transmitido pelas principais redes de televisão que lá se encontravam. “Circo” e não mais “teatro”. Foi este o termo que espontaneamente se disseminou entre todos os membros do mutirão para se referir à encenação testemunhada.
Mas apesar da nossa intenção de diferenciarmo-nos com relação ao par UPP/imprensa, constatamos que a presença de advogados e midiativistas na favela acabava indesejavelmente corroborando o “circo” da UPP. Poucos foram os moradores que de fato compreenderam a motivação do mutirão. Alguns perguntaram em tom de deboche se éramos turistas. Outros exclamavam “vou aparecer na Globo!”, ao serem por nós filmados ou fotografados. Quando interpelados sobre as suas expectativas a respeito da UPP, alguns moradores acionavam um tom levemente cínico e diziam-se muito contentes com a ocupação. Diante da insistência de um repórter em saber detalhes sobre a sua opinião, um morador explicou: “vocês vão embora e eu vou continuar aqui”. Pareciam interpretar que possuíamos algum vínculo com a UPP ou que a nossa presença na favela era apenas mais um resultado da pacificação, tal qual a dos vendedores de planos da Sky e Claro TV que ocuparam também o Lins na mesma manhã.
A experiência de domingo suscitou uma série de questões e, sobretudo, uma postura autocrítica. Como podemos nos articular para ocupar um lugar fora do “circo”? Como fazer para que a mídia livre seja reconhecida enquanto tal e possa servir de instrumento para os moradores que estiverem dispostos a pautar as notícias sobre a favela? Embora exista uma série de iniciativas de mídia alternativa em favelas, como as rádios comunitárias e ONGs que estimulam a produção local de conteúdo, ainda é pouco disseminado o conhecimento sobre essas ações. O desconhecimento é ainda maior no que se refere aos coletivos midiativistas de fora da favela, que estão agora dispostos a participar do cotidiano desses espaços. O imaginário local não reconhece ainda a figura do jornalista independente: essas pessoas que filmam, fotografam e fazem perguntas, mas não são informantes policiais – os chamados x-9 – ou tampouco trabalham para a Globo, SBT ou Record.
Está colocado o desafio. Assim como a imprensa livre conquistou o seu lugar na paisagem das manifestações e já não causa mais estranhamento algum, resta agora expandir essa naturalização da sua presença para outros espaços. As favelas são um caso a parte, que exigirá muita cautela e bom senso para não expor a segurança de pessoas que vivem em meio ao fogo-cruzado entre traficantes e policiais. Não podemos, contudo, corroborar as fronteiras tácitas que fracionam o espaço público urbano entre o morro e o asfalto.  A favela também quer falar e o midiativismo promovido por pessoas de dentro e fora das favelas quer somar forças para entoar sua voz pelos novos veículos que vêm se abrindo.

Abaixo um vídeo feito pela midiativista Paula Kossatz:





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