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terça-feira, 15 de outubro de 2013

CRÔNICA DE UM ANARCO-BLOC-CASAMENTO

Repórter de Campo Frida da Silva

Fotografia por Rivera
No banheiro feminino do Bar Amarelinho, Rosângela, 20 anos, vestida com um longo preto, é maquiada por uma mídia-ativista, enquanto três câmeras registram os preparativos. Um repórter ninja, em transmissão ao vivo pela internet, pede licença às moças e entra no banheiro para entrevistar a noiva, ansiosa por experimentar seu véu de flores negras e o buquê de pimentas. O visual havia sido elaborado pela sua "Mãe", uma espécie de madrinha, integrante da Rede de Defensores Independentes de Direitos Humanos (RDIDH) que "adotou" e cuida de vários jovens acampados há dois meses no "Ocupa Câmara", na Cinelândia, Centro do Rio.
Do outro lado do corredor, no banheiro masculino do bar, amigos do noivo, Gabriel, de 18 anos, tentam solucionar um impasse: a calça de seu terno havia sumido de sua barraca. "Alguém roubou a minha calça!", repetia ele, suando, nervoso. Se a calça não aparecesse, dizia ele, o casamento estava cancelado. Ao seu lado, um PM escovava os dentes, numa cena peculiar dentro de um banheiro quase público. Sem poder ser vista pelo noivo, Rosângela inquietava-se com o nervosismo de seu futuro esposo, um morador da Zona Norte que recentemente aderiu à tática black bloc e se juntou ao acampamento na Câmara, curioso em aprender mais sobre política.
Já passavam das 21h de sábado, dia 12, e as escadarias da Câmara estavam lotadas de jovens mascarados, mídia-ativistas e conhecidos dos noivos, que dançavam um repertório musical eclético, do heavy metal ao funk, com direito a rap político improvisado na hora. O coletivo Projetação exibia filmes em uma tenda em frente à escadaria e o churrasco estava na brasa. A noite unia a celebração de dois meses do movimento Ocupa Câmara e do primeiro casamento black bloc do Brasil – na verdade, foram dois casais –, conforme anunciado na páginas do grupo no Facebook. Durante o dia, jovens mascarados fizeram a doação de brinquedos nas ruas da Lapa, em celebração ao Dia das Crianças.
"Entre os blocs, existe amor. Não é só quebra-quebra como a mídia mostra. Nós somos pessoas normais, temos as nossas vidas", explicou Rosângela, que, apesar de ter um parceiro black bloc, não se auto-denomina assim. Depois de descobrir que o namorado havia ido escondido às primeiras manifestações, se juntou a ele e foi para as ruas, mas nem por isso se diz uma bloc. "Eu não sou nada. Ele que é. Eu vim pra cá por causa dele", completou a jovem, que vai oficializar a união também em cartório.
O impasse da calça foi resolvido por "Mãe" e alguns amigos do noivo, que o acalmaram e o convenceram a vestir uma calça jeans. Nas escadarias do prédio histórico, o mestre da cerimônia, Presidente, um senhor grisalho, considerado o mais experiente da Ocupação – por morar na rua há muitos anos e já ter participado de outras ocupações –, aguardava os noivos com um megafone na mão. Gabriel, com uma bandana preta cobrindo parte do rosto, não conseguia esconder a emoção ao ver Rosângela subindo o corredor de velas na escadaria, de braços dados com “Mãe”. 
Além deles, os namorados Paulista, de 25 anos, e Luna, de 26, também celebravam um anarco-casamento. Ele, um anarco-punk mascarado, com experiência em diversos atos em São Paulo, e ela, uma hippie-anarquista carioca, se conheceram no acampamento da Cinelândia. Defensor fiel da negação ao sistema, Paulista, que se auto-define como anarquista, disse que aquele casamento simbolizava a união de duas lutas, a anarquista e a bloc: “Black Bloc não é um grupo. Eu sou ativista. Somos indivíduos nos defendendo da polícia. (...) Dizer que esse é um casamento Bloc é uma ironia”.
Quase não havia espaço para os noivos naquele não-altar diante de tantas câmeras e celulares que registravam a ressignificação do casamento, transformado ali em ato político-anarquista-bloc-amoroso. Uma união sem alianças, pois estas são símbolos do “sistema”, segundo eles. Com o megafone, Presidente conduzia aquela anarco-cerimônia entre gritos da pequena e empolgada multidão, tais como o tradicional “Uh, Uh, Uh”, e “Anarquia!”. 
Rompendo todo e qualquer protocolo, “em nome dos black blocs”, o mestre de cerimônia chegou rapidamente ao que interessava: “Rosângela, você aceita Gabriel como seu legítimo black-esposo?”, indagou Presidente, que logo os declarou black-bloc-casados. Em seguida, a black-hippie Luna aceitou Paulista como seu legítimo punk-esposo, e vice-versa. 



Fotografia por Rivera

Todos cantaram parabéns para os dois meses do Ocupa Câmara, ao redor de um bolo gigante em celebração ao aniversário. “É uma celebração da resistência”, enfatizou uma das integrantes do Ocupa Câmara. “A polícia já bombardeou a nossa ocupação diversas vezes. E nós ficamos aqui o tempo todo”, adicionou.
A festa continuou com mais churrasco, gritos de protesto – como “Uh! Como é que pode? É o P2 que atira o molotov!” – e raps de cunho político: “O patrão achava ele maneiro; a milícia achava ele legal; os dois num bonde só pediram voto pro Cabral”. Os mascarados pulavam de alegria em rodas, e mais churrasco saía. 
RD, de 20 anos, um morador de rua que faz parte do Ocupa, nunca tinha ido a um casamento e estava realizado por ter sido padrinho de Rosângela e Gabriel. “Eu fiz grandes amigos aqui. Eles trouxeram alegria pra minha vida e me mostraram quem eu sou”, contou o padrinho, vestindo terno com camisa de caveiras por debaixo.

Por volta das 23h, o samba se misturou à festa no Ocupa, com a chegada de participantes da abertura não-oficial do carnaval 2014, que acabara de acontecer na Rua do Mercado. Em ritmo de samba, o bloco chegou cantando “Cabral é ditadoooorrrr”, e todos juntos, anarquistas, adeptos da tática bloc, mídia-ativistas, convidados e carnavalescos entoaram o mesmo grito, que, nas ruas, une essa massa tão diversa. Os casais saíram em lua-de-mel, mas a noite de amor black bloc seguiu na Cinelândia até de madrugada.

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