jornalismo independente vinhetando

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quinta-feira, 24 de outubro de 2013

QUANDO O POVO DELIBERA


Por Repórter de Campo Frida da Silva

A segunda Assembleia Popular, na Cinelândia, reuniu nesta quarta-feira, em frente às escadarias da Câmara, dezenas de cidadãos dispostos a debater publicamente sobre a participação popular em questões concernentes ao legislativo municipal. A comoção em relação aos presos políticos do dia 15 permeou a reunião, fruto do movimento Ocupa Câmara, que permaneceu por dois meses nas escadarias do Palácio Pedro Ernesto.
Antes de a roda de debates começar, todos cantaram músicas entoadas nas manifestações, como "Não adianta, me reprimir, esse governo vai cair!" e "Ocupar, resistir, lutar para garantir", em um clima de muita emoção, devido à prisão, naquele mesmo cenário, de dezenas de pessoas, algumas das quais participavam do Ocupa e da Assembleia Popular. Na roda, professores, estudantes, integrantes de movimentos sociais, alguns dos presos do dia 15 e outros cidadãos cariocas debateram por mais de duas horas sobre diversas propostas de ações populares no âmbito legislativo.
Dentre os temas debatidos no segundo encontro da Assembleia, estiveram a proposta de realização de uma investigação independente sobre a questão dos ônibus e a criação de um projeto de lei para a tarifa zero. Além disso, discutiu-se sobre a necessidade de se reformar o regimento interno da Câmara dos Vereadores, sobre a questão das remoções de comunidades para novas construções, sobretudo visando à Copa e às Olimpíadas, e sobre a privatização da saúde pública no Rio.
Também foram feitas diversas manifestações de apoio aos presos políticos ao longo dos debates. Eles se articulam agora para organizar um dossiê com relatos sobre as experiências na prisão, incluindo abusos e ameaças sofridas por alguns, e estudam a possibilidade de ações judiciais contra o Estado e órgãos de imprensa.
Um estranho no ninho carioca, um dos integrantes do movimento Occupy Wall Street, que parou o centro financeiro de Nova Iorque, em 2011, também esteve na assembleia. No Rio por quatro dias, o jovem está acumulando relatos e informações sobre as manifestações e ocupações que tem ocorrido na cidade. Em sua curta fala na roda, ele repetiu o grito que nasceu como símbolo dos adeptos da tática black bloc e ganhou ampla adesão entre os manifestantes: "Uh! Uh! Uh!", imitou ele, arrancando risos da roda.
O terceiro encontro da Assembleia Popular está marcado para a próxima quarta-feira, dia 30, quando se dará início à Comissão Popular de Investigação dos Ônibus. 

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Tiros de borracha e revistas a manifestantes em dia de leilão do pré-sal



Foto por Lula Carvalho
Por Repórter de Campo Frida da Silva

No dia em que as reservas do pré-sal do Campo de Libra foram leiloadas a um único consórcio concorrente, os protestos na Barra da Tijuca e no Centro foram marcados pela disparidade entre o gigantesco contingente de forças policiais e do Exército e o número reduzido de manifestantes. Enquanto na Barra houve o uso excessivo de balas de borracha e bombas de gás lacrimogênio contra a população, deixando diversos feridos, no Centro, a PM revistou sucessivamente os manifestantes e encurralou-os, em diversos momentos, no percurso da Candelária à sede da Petrobrás e, de lá, até a Cinelândia.
Menos de uma semana após a Polícia Militar prender cerca de 200 manifestantes no Centro do Rio, fragatas da Marinha, tropas do Exército e da Força Nacional desembarcaram na praia da Barra e se juntaram às forças policiais estaduais para isolar o perímetro do Hotel Windsor, na Avenida Lúcio Costa, onde o consórcio formado pela Petrobrás e Shell arrebataram as reservas do pré-sal. Centenas de petroleiros – e seus movimentos sindicais – participaram do ato na praia da Barra e, acuados, assistiram ao confronto entre as forças policiais e manifestantes mascarados, que foram alvos de muitas bombas de gás lacrimogênio e disparos de borracha.
Os petroleiros entraram em greve na última quinta-feira, colocando-se contra o leilão do pré-sal e o Projeto de Lei 4330, que visa a terceirizar a mão-de-obra nas plataformas de exploração do óleo. Um grupo de amigos petroleiros que trabalham na Bacia de Campos esteve ontem, pela primeira vez, em duas manifestações no Rio. Foram ao Centro direto da Barra, onde assistiram atônitos à luta empreendida por mascarados, que, segundo eles, eram compostos por toda sorte de gente, de trabalhadores a jovens estudantes. "Passei a admirar esses black blocs", comentou Alexandre, 32 anos, há 7 como petroleiro.  "É uma demonstração de força. Dá um caráter combativo à nossa luta. Aquela é uma juventude na qual eu me incluo", completou Chico, também 32 anos, há 11 trabalhando na área.
O grupo se uniu a uma pequena concentração de manifestantes que começaram a chegar à Candelária por volta das 17h. Apesar da convocação dos professores para a manifestação, um número pequeno de pessoas esteve presente. Alguns ativistas de movimentos sociais, integrantes de partidos de esquerda, professores e cidadãos cantavam contra o leilão do petróleo ("Que incompetência, o leilão não teve concorrência!"), contra o governador Sérgio Cabral ("Cabral, eu não me engano, seu coração é miliciano!"), e a favor do poder do povo ("Poder para o povo! E o poder do povo! Vai fazer um mundo novo!). Cartazes pediam a libertação dos presos políticos.

Foto por Lula Carvalho

Enquanto isso, dezenas de policiais militares revistavam todos que carregavam mochilas. A revista em massa foi a principal tática empreendida pela PM ontem, no Centro, em busca de possíveis flagrantes que permitiriam incriminar os acusados de serem "black blocs", mas, acima de tudo, visando a disseminar uma pressão e um clima de suspeição sobre todos que ali estavam. Alguns jovens chegaram a ser revistados duas ou três vezes até o fim da noite. E a música mais cantada do dia acabou sendo: "Não adianta, me revistar! É o Amarildo que você tem que achar!".
 Mídia-ativistas e cidadãos comuns empunhavam câmeras a cada revista feita, e um policial militar filmava aqueles que gravavam ações, valendo-se de um tom ameaçador e dizendo que as imagens por eles captadas iam "ficar guardadas no batalhão", como se fossem alguma espécie de indício de uma conduta desviante. Em muitas mochilas revistadas eram encontrados vinagre e leite de magnésia, usados para amenizar os efeitos de gás lacrimogênio, bem como camisas ou máscaras, e, em alguns casos, luvas, algumas das quais já continham marcas de queimaduras – indicando que poderiam ter sido usadas para se jogar bombas de gás lacrimogênio ou até coquetéis molotov. A cada luva retirada de uma mochila, os policiais faziam piadas e ameaças sutis, como "você vai ver o que é violência daqui a pouco".
Ao revistarem as mochilas de dois adolescentes de 16 anos, encontraram luvas e, em uma apostila de colégio, um desenho que dizia "Black Bloc". Em tom sarcástico, o PM segurou a apostila e disse: "Esse aqui é o pessoal que tem cultura, inteligente. Esse é o futuro do Brasil!". A população reagiu em tom de apoio aos jovens com o grito típico dos mascarados: "Uh! Uh! Uh!". Assim como na maioria dos casos, os adolescentes foram liberados. Algumas pedras portuguesas foram encontradas em mochilas.
Foto por  Frida da Silva
Um pouco antes das 19h, a pequena multidão de manifestantes seguiu em direção à sede da Petrobrás, na Avenida República do Chile. Alguns mascarados puseram-se à frente da passeata. Muitos policiais acompanhavam a movimentação do cortejo, que fechou o trânsito na Avenida Rio Branco até a esquina com a Avenida Chile, também interditada. Centenas de policiais aguardavam a chegada dos manifestantes nas imediações do prédio da Petrobrás. Os policiais chegaram a se enfileirar na Avenida, numa tentativa de impedir que a passeata se aproximasse do edifício, mas os manifestantes continuaram caminhando. Neste ponto, os populares seguiram em diferentes direções, rumo ao prédio. A polícia se misturava à multidão, mas também mantinha cordões de isolamento ao redor da sede da Petrobrás e esperava de prontidão em diversos pontos da Avenida Chile.
Sem líderes nem um planejamento pré-estabelecido, o ato continuou silencioso, com a permanência dos manifestantes ao redor do prédio, tanto na Avenida Chile, como na passarela que dá acesso ao prédio – onde diversas barracas compõem o movimento Ocupa Petrobrás. Mascarados ou cidadãos com mochilas eram sucessivamente alvo de revistas, sempre filmadas por pequenos grupos. O canto "Não adianta me revistar..." era evocado seguidamente. Integrantes do Ocupa Petrobrás pediam calma a policiais e manifestantes, tentando evitar confusões.
Por volta das 19h30, os policiais conduziram dois jovens mascarados, de 18 anos, até um veículo da PM, para que fosse feita uma busca de antecedentes criminais. A condução foi feita sob muitos protestos e confusão. Como não tinham antecedentes, os jovens foram liberados. O advogado ativista que lhes assistiu sugeriu que fossem embora. Eles deixaram o local inconformados pela atitude da PM.


Jovem exibe ferimentos por balas de borracha. Por Livia Reis.
Logo depois de os dois jovens serem liberados, os manifestantes seguiram em direção à Cinelândia, sob fortíssima escolta da polícia. Chegando lá, por volta das 20h, outras centenas de policiais estavam a postos. O protesto tomou as escadarias da Câmara, onde voltaram a cantar músicas de protesto. Policiais permaneciam no alto da escadaria, em meio aos manifestantes. Muita gente foi embora. Com a avassaladora presença da PM, inclusive jovens que costumam mascarar-se em protestos decidiram ir para casa. "Hoje não dá para ficar na linha de frente, não. É muita polícia", comentava um adolescente. 
Mais revistas eram feitas, e muita gente temia que novas prisões fossem efetuadas, como no último dia 15. Às 20h40, alguns mascarados resolveram se colocar diante do cordão policial em frente ao Theatro Municipal, que fechou suas portas. Mais gritos de protestos e cada vez menos gente. O mar de fardas azuis engolia quem ainda resistia. Novas revistas e mais tensão. Um morador de rua foi detido por porte de pedras e os manifestantes protestaram. Pequenos tumultos e corre-corre.
O Bar Amarelinho seguia aberto e o trânsito da Rio Branco estava liberado, sinais da ausência de confronto direto. Pouco antes das 21h, mascarados fecharam a Avenida Rio Branco e caminharam em direção à Avenida Beira-Mar. Aos poucos, a manifestação se dissipava e nem mesmo mídia-ativistas se faziam presentes. A repressão da última semana ainda pairava nas mentes dos cariocas e o largo efetivo da PM oprimia a pequena multidão.
Foto por Livia Reis
Seguindo o movimento de oscilação entre "povo na rua" e "povo acuado", desde junho, este poderia ser visto como um dia de esvaziamento das ruas. Ou, pior, de uma forçosa ocupação do espaço público pelas tropas repressoras do Estado. Mas as greves dos petroleiros e dos professores continuam, mais gente indigna-se com as prisões políticas, e novas mobilizações e pautas para manifestações surgem nas redes sociais e encontros sindicais. O grito de "Não vai ter Copa!" ainda ecoa pelas esquinas do Centro. Assim como o fantasma do Exército nas ruas.  


segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O CASO DE AMOR DA POLÍCIA COM A GRANDE MÍDIA

texto e fotos: repórter de campo absurdosturos


Quem tem ido às ruas participar de manifestações – e não apenas acompanhado pela televisão – sabe que a tônica da ação policial tem sido a repressão da população de maneira generalizada, mediante o uso de bombas de gás lacrimogêneo, bombas de efeito moral (que ferem com seus estilhaços), spray de pimenta, armas de choque elétrico (tasers), tiros de borracha (atualmente suspensos), de paintball (em vigor) e até mesmo de armas de fogo letais. Lembremos que foi a ação violenta das forças policiais contra manifestantes e jornalistas no dia 13 de junho, em São Paulo, que sensibilizou setores da sociedade até então descolados da agenda de reivindicações propostas pelo Movimento Passe Livre, culminando nas centenas de passeatas que levaram milhões às ruas do país nas chamadas “jornadas de junho”. Foi também a violência policial – desta vez contra professores da rede municipal, que foram escorraçados da câmara de vereadores do Rio de Janeiro no último sábado de setembro – que levou de volta às ruas do centro do Rio e de São Paulo dezenas de milhares de manifestantes no início do mês de outubro.


No entanto, ao contrário do que se viu na capital paulista na semana passada, quem esperava encontrar a presença maciça de policiais no centro do Rio de Janeiro durante a manifestação do dia 7 de outubro se surpreendeu. A tímida linha de policiais na Avenida Rio Branco (vide a foto acima)  e o destacamento da PMERJ em frente ao quartel-general da corporação, há cerca de 200 metros da câmara, já mostravam que a tática da polícia havia mudado. O distanciamento e a falta de reação da polícia abriram espaço para que a parede de pedra da câmara fosse coberta com frases de efeito dos manifestantes. De trás dos portões de ferro da câmara, a polícia esvaziou um extintor (?) em cima dos manifestantes, e a partir daí o que se viu foi um espetáculo pirotécnico, com coquetéis molotov, rojões e morteiros sendo lançados pelos manifestantes na porta e nas janelas da câmara. Novamente, a polícia pareceu não querer agir, e só depois de muito tempo fez o que vem fazendo: dispersou a população com uma chuva de bombas de gás lacrimogêneo.




Parte dos manifestantes recuou para a avenida Rio Branco, onde houve investidas contra agências bancárias, orelhões, pontos de ônibus e até contra o clube militar. Em um dado momento, um ônibus foi interceptado, esvaziado, atravessado na principal avenida do centro e queimado. E tudo isso sem qualquer intervenção da polícia. Esta só daria as caras mais tarde, com o hábito contumaz de perseguir manifestantes pelas ruas da Lapa, da Glória, do Bairro de Fátima, de Santa Teresa. Tal perseguição, convém lembrar, havia sido feita pela primeira vez após a grande passeata do dia 20 de junho, na qual manifestantes depredaram o prédio da Alerj sem que houvesse qualquer reação por parte das forças de segurança. Essa não intervenção da polícia caiu como uma luva para a velha mídia, que “infiltrou-se” nas manifestações – uso aqui o jargão nativo desses veículos de comunicação, que repetem como um mantra a frase “mascarados infiltrados nas manifestações” ao mesmo tempo em que enviam às ruas repórteres “descaracterizados”, que valem-se do anonimato das multidões para produzir imagens da “baderna” dos “vândalos” e, com isso, reforçam o proselitismo que sustentará, com imagens, o mantra supracitado.


Qualquer semelhança com o ocorrido no bairro do Leblon durante o Ocupa Cabral não é mera coincidência: quem esteve lá no dia 17 de julho viu que a polícia decidiu não agir, deixando que barricadas de fogo fossem feitas e agências bancárias fossem quebradas. Ao ver a situação caótica do bairro, convenientemente explorada com imagens nos telejornais, os moradores do bairro de classe alta logo posicionaram-se contra aqueles “vândalos” que promoveram tais atos de destruição. Antes do ato em questão, havia sido realizada uma reunião entre o comando da Polícia Militar do Rio de Janeiro, o secretário estadual de direitos humanos e representantes de entidades como OAB, Anistia Internacional e Defensoria Pública. O resultado dessa reunião foi um acordo para que a polícia reduzisse seu efetivo e o uso ostensivo de armamento não letal. Segundo alguns jornalistas independentes e manifestantes, uma fonte anônima descrita como “extremamente confiável” contou que “a PMERJ vai tolerar, temporariamente, atos de vandalismo, com objetivo de jogar a opinião pública contra os manifestantes”.


Aliada à estratégia de infiltrar policiais à paisana (P2) com o objetivo de incitar depredações, a tática de “tolerância” da polícia parece funcionar muito bem, principalmente porque conta com o apoio da cobertura midiática feita por veículos de comunicação de massa, que têm papel fundamental na formação da opinião pública. Com o endosso desta última, a polícia, na noite de terça, dobrou seu efetivo, partiu para cima dos manifestantes, desfez o acampamento do Ocupa Câmara (que havia completado dois meses no fim de semana) e deteve quase 200 pessoas. Várias dessas pessoas estavam apenas sentadas na escadaria da câmara, protegendo-se do festival de gás lacrimogêneo produzido pela própria polícia. Ainda assim, muitos foram enquadrados na obtusa lei de organização criminosa, conforme fora anunciado na semana passada – não por acaso, logo após a manifestação em que ocorreram depredações sem qualquer repressão das forças de segurança. Também não é acaso a manchete do jornal O Globo do dia seguinte às prisões em massa: “lei mais dura leva 70 vândalos para presídios”. Parece óbvio que o casamento da tática policial com a cobertura televisiva das manifestações produz, como fruto de tal união marital, uma opinião pública infantilizada, uma espécie de criança pura e frágil que, imersa na ignorância promovida pela mãe mídia, aceita a ação repressora do pai polícia.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

UM TOM ACIMA NA REPRESSÃO


Por Repórteres de Campo Frida da Silva e Ida Bel

Coração da resistência carioca nos últimos dois meses, o acampamento do Ocupa Câmara foi transformado nesta terça-feira, dia 17 de outubro, em cenário de repressão digno dos anos de chumbo, quando centenas de policiais isolaram as escadarias do Palácio Pedro Ernesto, prenderam indiscriminadamente todos que ali estavam e removeram por completo a ocupação. Este seria o ato final de repressão na noite em que dezenas de milhares de pessoas foram às ruas do Centro do Rio, mais uma vez, em apoio à luta dos professores e em defesa ao direito de se manifestar, e quase 200 foram detidas, apesar de, na maioria dos casos, não haver flagrante. A Polícia Civil divulgou que 70 dos presos seriam enquadrados na lei contra o crime organizado – 12.850/2013 ­–, sendo 20 delas menores de idade. Os maiores foram levados ontem a Bangu.
Nos mesmos degraus onde o movimento Ocupa Câmara lutou por uma CPI dos ônibus idônea e pelo direito à livre manifestação, e celebrou dois meses de ocupação no último sábado, manifestantes foram presos, muitos apenas por estarem ali sentados. O acampamento foi desfeito e os pertences pessoais dos ocupantes descartados em um caminhão da Comlurb, enquanto policiais buscavam apreender “provas” e as pessoas detidas eram conduzidas para três ônibus que deixaram a Cinelândia em direção a oito diferentes delegacias espalhadas pela cidade – a maioria longe do Centro, para que se evitassem novos protestos. Este foi o desfecho de um ato popular que durou por mais de sete horas, culminando em confrontos entre policiais e manifestantes, que resultaram em muitas pessoas feridas, sendo um jovem de 18 anos baleado por projéteis de arma de fogo.
O clima na concentração da passeata era de tensão. Alguns diziam acreditar que a repressão policial seria severa, em retaliação aos confrontos ocorridos na manifestação da semana anterior. As prisões indiscriminadas já eram temidas, vide os mandados de busca e apreensão executados dias antes a partir de investigações da Polícia Civil através das redes sociais. Supostos integrantes de grupos anarquistas e moderadores de páginas da internet tiveram seus computadores apreendidos e suas residências revistadas, sob a acusação de serem articuladores de grupos organizados para a prática do “vandalismo”, embora se saiba que a chamada “ação direta” em protestos não esteja ligada a grupos, mas à adesão espontânea de manifestantes a um modo de agir. Como de praxe, o telefone do plantão de advogados da OAB era repassado em páginas do Facebook, caso alguém precisasse de defesa. E, de fato, foi a noite em que os advogados mais tiveram trabalho desde o início das manifestações.

A passeata pela Rio Branco transcorreu de forma tranquila, com professores na linha de frente, cantando: "Sai, sai da frente, sai que a educação é chapa quente!". Diversos movimentos sociais, sindicatos e partidos políticos da oposição de esquerda ergueram suas bandeiras em defesa aos professores, trazendo também suas próprias pautas para o protesto. Dezenas de mascarados caminhavam no meio da passeata e tornavam-se alvo principal de fotógrafos, ávidos por mostrarem os rostos desses jovens.
Milhares de manifestantes empunhavam cartazes e entoavam canções direcionadas principalmente contra o governador Sérgio Cabral Filho, pelo fim da Polícia Militar, contra a Copa do Mundo e por mais verbas para a saúde e educação. Emocionados, os professores parodiavam o hino libertário “Povo Unido”: “Avante companheiros que essa luta é minha e sua. Unidos venceremos e a greve continua.” Um senhor fazia piada da proibição ao uso de máscaras e distribuía máscaras de chapeuzinho vermelho durante a passeata.
Chegando à Cinelândia, os manifestantes mascarados dirigiram-se às imediações da câmara, onde, diferentemente da postura adotada na semana anterior empreenderam-se na tarefa de impedir que depredassem o prédio. Embora alguns rapazes tenham pichado os muros do Palácio Pedro Ernesto, cordões de isolamento foram sucessivamente formados por mascarados que tentavam impedir as pessoas de se aproximarem dos portões do prédio. Gritavam “escada!”, convocando todos a deixarem as laterais do edifício. Alguns deles declararam aos repórteres independentes que só resistiriam caso a polícia os atacasse e que estavam procurando conter aqueles que se mostravam dispostos a iniciar a ação direta na câmara. Construiu-se o consenso momentâneo de que quem tacasse alguma bomba ou pedra seria considerado um policial infiltrado – conhecido como P2. Nas ruas atrás da Câmara, centenas de policiais com escudos permaneciam enfileirados. Um cartaz que indagava: "Onde está a ossada do Amarildo?" foi posto na frente de um cordão de isolamento da PM, na Rua Senador Dantas. Curiosos e integrantes das mídias corporativa e independente dirigiam-se até os limites territoriais impostos pela polícia para tirarem fotos e filmarem, e também eram interpelados com gritos de "volta" pelos mascarados.


Pouco antes das 20h, um silêncio inquietante tomou conta da Cinelândia. O carro de som do Sindicato dos Profissionais da Educação do Estado já havia deixado a passeata e as pessoas reunidas em frente à Câmara pararam de cantar por alguns minutos. A esperança de que aquele poderia ser um dia sem violência nem arbitrariedades perpassou as mentes de alguns dos presentes, que idealizavam uma volta para casa sem correr de um bombardeio de gás lacrimogênio.
Pouco depois deste momento silencioso, parte da massa decidiu seguir em direção à Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) e começou a caminhar pela Rua Araújo Porto Alegre. Acontece que dezenas de policiais militares estavam a postos nas esquinas seguintes, com a Rua México e Avenida Graça Aranha. E, a partir deste turbulento encontro entre manifestantes e policiais, acabou-se a fugaz esperança de uma volta para casa tranquila. Às 20h15, ouviam-se estrondos e começava a chuva de bombas de gás por parte da PM. Muitas pessoas correram. Mascarados resistiram na linha de frente com a polícia.
De um modo geral, notou-se que, a cada manifestação a população perde, cada vez mais, o temor pelas bombas, e anestesia-se diante da imagem do caos e do cheiro de gás, resistindo aos ataques disparados pela PM, sob gritos de "agrupa!", "volta!", e "ocupar, resistir, lutar pra garantir!". Cada vez mais pessoas deixam de correr quando começam as bombas e optam por permanecer no protesto, inclusive andando em direção às bombas para registrarem o confronto com suas máquinas. Alguns manifestantes mascarados mantiveram-se na linha de frente, resistindo às tentativas de progressão de um grupamento do batalhão de Choque que vinha pela Avenida Rio Branco. Protegidos atrás de tapumes e chapas de metal retiradas da fachada dos comércios, os manifestantes lançavam pedras contra a guarnição policial, fazendo-a recuar.
Enquanto isso, pequenos grupos espontaneamente formados espalhavam-se pela Cinelândia em busca dos alvos preferenciais da sua iconoclastia. Quebraram vidraças de agências bancárias, de uma lanchonete da rede McDonald’s, atearam novamente fogo no Clube Militar e em um micro-ônibus da Polícia Militar. Foram escutados disparos de armas de fogo letais, posteriormente confirmados em vídeos que circularam na internet, um deles mostrando um policial atirando por detrás de seu escudo, na Rua México, e o outro revelando prováveis policiais à paisana, atirando contra os manifestantes, próximo ao micro-ônibus da corporação.
Com a chuva de bombas na Cinelândia, o fogo no micro-ônibus da polícia, e o barulhos de tiros, parte dos multidão correu em direção à Glória, pela Rua Mestre Valentim, em busca de um lugar seguro. No caminho, um acidente com uma moto deixou uma pessoa ferida na esquina da Rua Teixeira de Freitas e a Avenida Augusto Severo. As pessoas corriam de bombas jogadas muito perto do acidente. Ao caminharem pela entrada da Glória, manifestantes tentavam decidir por onde seguir: se voltavam à Cinelândia, passavam pela Lapa ou seguiam para Laranjeiras em direção ao Palácio Guanabara ­– a Rua Pinheiro Machado chegou a ser interditada preventivamente.
Enquanto isso, carros do Batalhão de Choque contornavam a Praça Paris para bloquear a passagem de quem fugia das bombas na Cinelândia. Cerca de 20 policiais do Choque progrediram a pé na direção de quem acabara de correr do bombardeio na Cinelândia. Na esquina com a Rua Cândido Mendes, esse grupo do Choque partiu para cima de todas as pessoas que ali estavam,  jogando muitas bombas de gás lacrimogênio. Quem estava em um bar na esquina da rua foi pego de surpresa pela imensa névoa e ficou intoxicada com ela. Os homens de preto subiram, então, a ladeira Cândido Mendes, e, diante de protestos de moradores, chegaram a disparar tiro de borracha contra um prédio. Poucos minutos depois, eles desceram de volta e foram vaiados pela população, que gritava, revoltada: "Seu filho é meu aluno!" e "Tem que acabar, não acabou, eu quero o fim da Polícia Militar.
Ali perto, um carro da PM do modelo Logan foi incendiado por manifestantes, na Rua Joaquim Silva, onde também depredaram um ônibus e incendiaram sacos de lixo. Na Lapa, as luzes foram apagadas, o acesso bloqueado pela PM e os bares fechados.

Enquanto isso, manifestantes que ainda não haviam conseguido distanciar-se do cenário de guerra da Cinelândia, seguiam desorientados, sem conseguir deixar o local, pois subitamente formaram-se bloqueios policiais que fechavam praticamente todas as rotas de fuga, disparando bombas contra a população. Para muitos, a solução foi retornar às escadarias da Câmara, onde em meio a policiais e bombeiros uma nova aglomeração de manifestantes se formou. Bastou o conflito se arrefecer um pouco e centenas ou talvez mais de mil juntaram-se outra vez na Cinelândia, vaiando a polícia e cantando músicas provocativas como “au, au, au, cachorrinho do Cabral!”.
Ofendidos, os policiais jogaram mais bombas contra os manifestantes que os seguiam cantando pela Rua Evaristo da Veiga, deflagrando-se um novo conflito. Alguns jovens resistiram à ação da polícia, tacando pedras e morteiros, enquanto outros tentavam se proteger das bombas. Alinhamentos do batalhão de choque vindos de diferentes direções avançaram pela Cinelândia, mas o conflito cessou novamente e mais manifestantes chegaram ao local.  Pouco antes das 22h, a Cinelândia permanecia lotada, tanto de manifestantes que cantavam animadamente em frente à Câmara, quanto de PMs, que aguardavam enfileirados em pontos estratégicos na área. Carros do Batalhão de Choque faziam rondas pela Avenida Rio Branco, enquanto manifestantes gritavam "Não tem arrego!", "A PM é a vergonha do Brasil" e "Resistência!".
Aos poucos, a polícia começou a conduzir seguidas revistas a pessoas que carregavam mochilas. Um menor de idade foi revistado e apreendido por, supostamente, portar um estilingue. A prisão do jovem deixou inconformado quem assistia à cena, atraindo muitas câmeras e curiosos à ação. Conforme os policiais conduziam o adolescente apreendido pela Cinelândia, mais pessoas se aproximavam para protestar. A fagulha novamente estava acesa e nova onda de confrontos se iniciou. As bombas foram tantas que algumas delas estouraram ao lado dos policiais a postos perto do Cinema Odeon. Mais corre-corre e a multidão se dispersou.
Em meio aos conflitos que irrompiam a todo instante, muitos manifestantes que não estavam confrontando a polícia procuraram abrigo nas escadarias da Câmara Municipal e viram-se, de repente, cercados por um cordão formado por centenas de policiais, que, por sua vez, começaram a prender quem ali estivesse. Enquanto eles desmontavam o acampamento da ocupação, quatro ônibus da polícia deixaram o local, repletos de manifestantes detidos. Paralelamente, o cerco policial impedia a aproximação da imprensa alternativa e ampliava-se empurrando as pessoas que assistiam à operação para cada vez mais longe. Quando se disseminou a informação de que todos os demais que insistissem em continuar na Cinelândia seriam também presos, os últimos que ainda acompanhavam a ação da polícia desistiram de permanecer no local.

De dentro do ônibus da polícia, um repórter ninja escondeu seu smartphone e continuou transmitindo apenas o áudio ao vivo via TwitCasting. Enquanto isso, advogados da OAB e de organizações de direitos humanos empreendiam-se na árdua tarefa de identificar para quais delegacias os presos seriam conduzidos. Parentes e amigos de manifestantes comunicavam-se pelo Facebook, em busca do paradeiro dos detidos. Ao longo de todo o dia seguinte, diversas manifestações a favor dos presos foram feitas na internet, ressaltando-se que a maior parte deles eram ativistas pacíficos e estudantes.
Do total de 190 detidos e distribuídos em oito delegacias, estima-se que 67 permanecem presos e 18 adolescentes apreendidos. Estão respondendo principalmente pelos crimes de formação de quadrilha, aliciamento de menores, dano ao patrimônio, tentativa de furto e incêndio. Uma parcela significativa dos presos foi enquadrada na lei 12.850/2013, que define o conceito de organização criminosa, muito embora não tenham sido apresentadas outras provas senão a mera presença circunstancial nas escadarias da Câmara para que se fundamentasse a tese de que estas dezenas de pessoas estavam associadas entre si para a prática de crimes. As “provas” acionadas para se configurar o flagrante foram o material apreendido em posse de uma parcela dos detidos e, sobretudo, nas barracas e cozinha do acampamento do Ocupa Câmara: como facas, provavelmente parte delas foi utilizada no churrasco de sábado; madeiras com pregos, possivelmente retiradas da estrutura de madeira que sustentava a cozinha; leite de magnésio, utilizado para sanar a irritação causada pelo gás de pimenta, estilingues, além de máscaras contra gás, as quais são hoje usadas até por professores.
Um abaixo-assinado foi lançado ontem a favor da liberação dos presos políticos, no site Avaaz, e já colheu mais de 9 mil assinaturas. Nas páginas dos jornais de hoje, fotos dos presos políticos e de sua transferência para Bangu, como num hall de criminosos procurados, transformados em "vândalos", inimigos da segurança pública carioca, com a chancela da mídia corporativa. A batalha jurídica agora segue na Justiça, com dezenas de advogados da OAB lutando pela defesa de seus réus contra as acusações de organização criminosa, e novas denúncias contra policiais surgem nas redes sociais com rapidez. Mas a maior parte da sociedade carioca assiste apática e indiferente ao desenrolar de um processo de recrudescimento da máquina repressora estatal.