Por Repórter de Campo Frida da Silva
Fotos de Lula Carvalho
O lento compasso do surdo marcava o ritmo da caminhada silenciosa dos
manifestantes na Avenida Rio Branco, com a marcha fúnebre ao fundo. Bolinhas de
sabão e papéis picados voavam sobre as mais de duas mil pessoas, em gestos
simbólicos de apoio ao grito amordaçado de uma pluralidade de vozes. Dos olhos
de muitos, escorriam lágrimas, de dor, pelos presos políticos, pela violência
do Estado, pelos mortos em favelas, pela repressão às manifestações, mas também
de uma esperançosa alegria, por experimentarem a força do silêncio e por serem
parte viva da construção de uma harmonia entre grupos, movimentos e coletivos,
despidos ali de quaisquer preconceitos, unidos pela força das ruas.
Movimentos sociais, coletivos, mídias independentes, ativistas, presos
políticos, adeptos da tática black bloc, professores, artistas, petroleiros e
cidadãos compuseram nesta quinta-feira o Grito da Liberdade, um ato
político-estético-cultural pela liberdade dos gritos, dos presos políticos e
das manifestações. Foram mais de sete horas de protesto, desde as 15h, em
frente ao Fórum, até depois das 22h, nos Arcos da Lapa, sem que nenhuma espécie
de confronto entre policiais e manifestantes ocorresse. Na Cinelândia, palco
dos últimos embates diretos e da repressão policial, manifestantes, incluindo
mascarados, deram as costas para centenas de policiais e deixaram pacificamente
as escadarias da Câmara em direção à Lapa, onde o ato encerrou-se com música,
leitura do manifesto político do Grito da Liberdade (leia a íntegra abaixo),
projeções e exposição de fotos.
Diante da ausência de ações diretas criminalizadas pela opinião pública
como “vandalismo”, a manifestação não ganhou destaque na cobertura da mídia
corporativa, que limitou-se a mencionar superficialmente a existência de um
protesto sem confrontos no Centro. Mais uma vez, a mídia corporativa não deu
ouvidos às vozes que ali se manifestaram, silenciando-as, violentando-as, sem querer
compreendê-las, sem divulgar as nuances deste protesto silencioso, que teve
ações politicas e estéticas a cada passo dado, com uma pauta de reivindicações
reunida em forma de manifesto, assinado por mais de 50 coletivos e grupos.
Nada disso é relevante a corporações que endossam a criminalização dos
manifestantes, vandalizando-os, visando ao esvaziamento dos protestos e à
"limpeza" das ruas, para que a imagem da cidade saia bem nas fotos
dos megaeventos. Em uma das faixas carregadas no protesto, lia-se: "Globo é ditadura. Jornalismo vandalismo".
O manifesto do Grito também chamou a atenção para o monopólio da mídia, pedindo
a democratização dos meios de comunicação e a "aprovação integral do Marco Civil da Internet, com exclusão do parágrafo 2º
do Artigo 15".
Na concentração do ato, em
frente ao Fórum, manifestantes confeccionaram cartazes de protesto, pintaram
camisas com a frase "Não tem arrego", distribuíram mordaças aos
participantes e leram o manifesto assinado pelos coletivos, cujas pautas
incluíam a liberdade e anistia dos presos políticos, a desmilitarização da PM e
o fim da violência policial. Caixas pretas do grupo de artistas plásticos
Alalaô foram montadas e empilhadas em frente ao Tribunal. Nelas, foram colados
cartazes de "Procura-se" com as fotos de Sérgio Cabral e Eduardo
Paes. O grupo de percussão BlocAto tocou, desde a concentração até o fim do
ato, marchinhas de protesto e versões de músicas famosas, como “Cabral, queria
que você! Cabral, queria que você! Investisse em educação e esquecesse a UPP!
Investisse em educação e esquecesse a UPP!”, no ritmo de um funk da década de
90.
A passeata iniciou-se,
por volta das 16h30, com uma caminhada de costas, simbolizando os retrocessos
dos governantes, da Justiça e do Legislativo, que, juntos, criminalizam as
manifestações e fazem vista grossa à violência empreendida pela polícia, tanto
na repressão aos manifestantes como em ações em favelas. Em frente à Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro, manifestantes cantaram com ironia a música
"Rio de Janeiro sensacional! Tomou a Alerj, com pedra e pau!", em
referência ao protesto de 17 de junho. Mascarados posaram performaticamente diante
do cordão de isolamento de policiais em frente à Casa, onde foi aprovada a Lei Nº
6528/ 2013, que proíbe o uso de máscaras em manifestações.
Diversas intervenções
artísticas de protesto aconteceram ao longo do ato, como a dupla que representava a TV Globo e suas
posições político-repressoras. Outra dupla interpretava um integrante da FIFA e
um mascarado preso por ele, em referência à criminalização dos manifestantes,
com vistas ao esvaziamento das ruas para a Copa do Mundo de 2014. A
"quadrilha" dos pink Blocs trazia mascarados homossexuais que
cantavam músicas políticas provocativas e distribuíam flores.
Deitados diante da
Candelária, os manifestantes relembraram os mortos na chacina do lado de fora
da igreja e todas as vítimas de homicídios cometidos por policiais. Enquanto
essa intervenção ocorria, grupos de policiais começaram a revistar manifestantes, anotando o nome de
diversas pessoas, de modo indiscriminado. A população protestou contra a ação
da polícia e os manifestantes revistados puderam voltar à passeata.
Na esquina das avenidas
Presidente Vargas e Rio Branco, a multidão silenciou e amordaçou-se. O comércio
já fechado não condizia com a serenidade do protesto. Quem saía do trabalho
enfileirava-se para acompanhar, com curiosidade, aquela caminhada não-usual. Na
linha de frente, os mascarados marchavam em quietude. A faixa "Libertem
Baiano e Rafael - Lutar não é crime" pedia a libertação de dois dos
manifestantes presos, alguns dos quais participaram do ato.
Cartazes com desenhos do
artista Alex Frechette mostravam os rostos de diversos manifestantes agredidos
por policiais nas ruas. Integrantes do Movimento pela Legalização da Maconha
seguravam a faixa que dizia: "A guerra as drogas matou o Amarildo". Ao longo do percurso silencioso, foram
gritados nomes de presos políticos e locais onde houve chacinas.
Por volta das 18h30, o
cortejo fúnebre chegou à Cinelândia, onde os manifestantes arrancaram as
mordaças e gritaram pela liberdade. Mascarados e sem máscaras correram em
direção às escadarias da Câmara e logo cantaram sarcasticamente: “Olha eu aqui
de novo!!!”. Mas a ocupação da escadaria durou somente poucos minutos, para a
surpresa da tropa policial, a postos para atuar contra os “vândalos”, categoria
esta posta em cheque neste dia.
Conforme o BlocATO
seguiu tocando pela Avenida Rio Branco, em direção ao Passeio Público, aqueles
que ocupavam a escadaria desceram e fundiram-se novamente à multidão, num balé
de corpos que indicava a confluência do desejo de fortalecer o movimento das
ruas. Todos seguiram rumo à Lapa, e,
para trás, ficaram as pilhas de caixas pretas, carregadas por todo o percurso e
reempilhadas diante do Palácio Pedro Ernesto, justamente onde nada investigou a
CPI dos Ônibus, inspiração para o trabalho do Alalaô. Médicos socorristas e advogados da OAB acompanharam toda a passeata, sem precisar atuar em seus campos específicos, mas agindo ali também como ativistas.
Nem mesmo as vidraças de
Eike Batista foram alvo na quinta-feira. A polícia estava a postos ali também,
mas ninguém se preocupou em depredar ainda mais aquele símbolo (da falência) do
capitalismo. A proposta de todos ali era terminar o protesto na Lapa, com arte
e música, sem confrontos diretos. Ainda antes de anoitecer, os milhares de
manifestantes ocuparam a área sob os Arcos da Lapa. Diante da movimentação,
muito policiais deixaram a Cinelândia e seguiram atrás do cortejo, compondo a
ala repressora dos alfanuméricos.
No alto dos Arcos, uma
faixa lembrava que a Aldeia Maracanã resiste. Batman e o Batman pobre posavam
para os fotógrafos lá de cima. Pouco depois da chegada à Lapa, uma correria.
“P2! P2!”, gritavam jovens que corriam atrás de um homem, supostamente um
policial infiltrado, figurinha sempre fácil (quase sempre visível) nas
manifestações. O homem fugiu e logo a pequena confusão se dispersou.
O BlocATO tocou até MC
Leonardo puxar alguns funks famosos, como o Rap do Silva, em um microfone
improvisado, conectado ao carrinho alegórico da Mídia Ninja. Em seguida, o manifesto do Grito foi lido
mais uma vez, e o Coletivo Projetação promoveu projeções sobre os arcos,
pedindo a liberdade de Baiano e “menos polícia e mais políticas públicas”,
entre outras frases questionadoras. Autor do hit “Bandido do Rio”, MC PH Lima
cantou o rap em que Cabral, Paes e Dilma figuram como bandidos cujas vítimas
são a população. Um helicóptero sobrevoava o local e apontava suas luzes para
os manifestantes, que reagiam com gestos obscenos e gritos de reprovação.
Por volta das 20h, mascarados
despiram-se e, com rostos aparentes, foram embora sem deixar nenhum rastro de
“vandalismo” que pudesse ganhar as manchetes do dia seguinte. A PM permaneceu
cercando a área onde os manifestantes dançavam e conversavam, mas, aos poucos,
foi deixando o local.
O Grito da Liberdade
continuava nas rodas de amigos manifestantes, realizados por terem ocupado as
ruas mais uma vez, em um protesto em que mascarados e não-mascarados compuseram
uma massa uniforme, violentada pelo Estado, preparada para arrancar as mordaças
da repressão e disposta a permanecer nas ruas até que sejam libertados os
presos políticos, até que as pautas reivindicatórias sejam atendidas. Calar-se
para não ser calado, unir-se para ser mais forte, dar as costas à polícia em desprezo
à repressão. O povo nas ruas resiste, até que caia a última das mordaças.
ANEXO:
Manifesto do Grito da Liberdade
ANEXO:
Manifesto do Grito da Liberdade
"O Grito da Liberdade é um ato pela
liberdade dos GRITOS!
O ato é uma convocação popular às ruas
pelo fim do momento de exceção ao qual o Rio de Janeiro tem sido submetido por
seus governantes. Nosso grito é contra a aplicação das leis de Segurança
Nacional e de Crime Organizado contra manifestantes, pela libertação imediata
dos presos políticos e pelo direito amplo e irrestrito de livre manifestação,
garantido na Constituição de 1988, e que tem sido sistematicamente violado pelo
Estado em nome dos megaeventos.
Que possamos ter o DIREITO de GRITAR
nossas pautas com LIBERDADE!
Nos últimos meses, a barbárie que sempre
existiu nas favelas, em especial contra a juventude negra, chegou às ruas para
tentar calar as vozes daqueles que exercem sua liberdade de expressão na luta
por direitos. Nesse contexto, todos os movimentos sociais e cidadãos têm sido
criminalizados com a ajuda das grandes corporações de comunicação.
Estamos aqui para DENUNCIAR os crimes
cometidos pelo Estado e comunicar que vamos ficar nas ruas até que os nossos
direitos fundamentais sejam respeitados e nossas pautas atendidas, sendo elas:
1) Fim das prisões políticas
Ninguém deve ser detido sem que haja
mandado de prisão ou flagrante delito, nem nas favelas, nem nas manifestações.
Contra a arbitrariedade dos mandados de prisão. Repugnamos o uso da Lei de
Segurança Nacional e da Lei 12.850 contra os manifestantes.
2) Anistia aos processados e aos presos
políticos
Todos os procedimentos policiais
(Registros de Ocorrência, VPIs e inquéritos) e judiciais (processos), abertos
arbitrariamente contra manifestantes, devem ser extintos.
3) Garantia do direito à livre
manifestação
Liberdade irrestrita de expressões
artísticas, culturais, sociais e políticas nas ruas, praças e espaços públicos.
4) Fim da violência policial
As polícias abusam de seus poderes a
mando do Estado, executando negros, pobres e moradores de favela, e perseguindo
violentamente os manifestantes que estão nas ruas. Exigimos o fim dos
desaparecimentos forçados, do uso de armas letais em manifestações, do uso
abusivo de armamentos "não letais" e dos autos de resistência.
5) Desmilitarização da PM
Queremos o fim da Polícia Militar e a
reestruturação da política de segurança do Estado.
6) Fim da "pacificação" armada
Não acreditamos na pacificação armada
das comunidades. Exigimos a revisão das práticas arbitrárias e reprodutoras de
violência utilizadas pelas UPPs. Revisão da atual política de combate às
drogas, visto que é uma questão de saúde e não de polícia.
7) Investigação dos crimes cometidos
pelas polícias Militar e Civil através de Corregedorias independentes dos
governos dos quais elas fazem parte.
O Estado não deve investigar a si mesmo.
Queremos uma investigação efetiva.
8) Democratização dos meios de
comunicação
Repudio à conivência da grande mídia
corporativa com a violência do Estado e a distorção de fatos na tentativa de
criminalização dos movimentos sociais. Faz-se urgente o fim do monopólio da
mídia, representado principalmente pelas Organizações Globo.
9) Marco Civil da Internet
Queremos a aprovação integral do Marco
Civil da Internet, com exclusão do parágrafo 2º do Artigo 15, que garanta a
liberdade de expressão, a privacidade e a neutralidade na rede.
10) Abertura de diálogo entre Estado e
sociedade civil
Todas as pautas das ruas e formas de
expressão da revolta popular devem ser escutadas e discutidas. Lembramos que:
“Todo o poder emana do povo" (Constituição da República Federativa do
Brasil).
Lutamos, ainda, pelas pautas que estão
nas ruas e alimentam o movimento há meses:
Pelos direitos dos profissionais da
educação e por melhorias nas condições de ensino público; pela valorização da
cultura como eixo fundamental da educação do povo; por uma saúde pública melhor,
universal, com mais médicos e equipamentos nos hospitais; contra as remoções;
pelo direito à mobilidade urbana, com uma CPI dos ônibus idônea, por melhorias
nos serviços explorados por Supervia, Barcas S.A. e Metrô, e a favor da catraca
livre.
Contra os gastos abusivos com a Copa e
as Olimpíadas; contra as privatizações; contra a corrupção, desvio de verbas
públicas e altos impostos; por reformas políticas que possam integrar o povo às
decisões políticas; pelos direitos indígenas, demarcação de terras e em apoio a
Aldeia Maracanã; contra a homofobia e a violência contra a mulher; contra a
venda do pré-sal e a privatização do setor petrolífero.
Responsabilizamos os seguintes
representantes do Estado pelos atos criminosos contra a sociedade:
Dilma Rousseff – Presidente da República
Federativa do Brasil
José Eduardo Cardozo - Ministro da
Justiça
Deputado Henrique Eduardo Alves -
Presidente da Câmara dos Deputados
Senador Renan Calheiros - Presidente do
Senado
Sérgio Cabral - Governador do Estado do
Rio de Janeiro
José Mariano Beltrame - Secretário de
Segurança do Estado do RJ
Martha Rocha - Chefe da Polícia Civil
Coronel José Luis Castro Menezes -
Comandante Geral da Polícia Militar do RJ
Deputado Paulo Melo - Presidente da
ALERJ
Desembargadora Leila Mariano -
Presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
Marfan Martins Vieira - Procurador Geral
do Ministério Público RJ
Eduardo Paes - Prefeito da Cidade do Rio
de Janeiro
Claudia Costim - Secretária Municipal de
Educacão
Wilson Risolia - Secretário Estadual de
Educação
Sérgio Sá Leitão - Secretário Municipal de
Cultura
Vereador Jorge Felippe - Presidente da
Câmara Municipal do Rio de Janeiro
Fernando dos Santos Dionísio -
Procurador Geral do Município do Rio de Janeiro
Responsabilizamos os seguintes
representantes de entidades internacionais pelos atos criminosos contra a
sociedade:
Joseph Blatter – Presidente da FIFA
Thomas Bach - Presidente da COI
Jérôme Valcke - Secretário da FIFA"
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